As instituições de memória precisam colocar em discussão as percepções internas e externas sobre sua neutralidade e nós precisamos chegar a uma conclusão sobre o que isto significa
“Se você se comportar com neutralidade diante de situações de injustiça, estará escolhendo o lado do opressor. Se um elefante pisar com a pata no rabo de um camundongo e você disser que é neutro, o camundongo não vai gostar de jeito nenhum de sua neutralidade” (Desmond Tutu).
Uma vez discuti com algumas pessoas se as instituições de memória, como museus, bibliotecas e arquivos não deveriam modificar classificações e descrições preexistentes que tratassem de material relativo a povos originários, sempre que tivesse sido usada uma terminologia antiquada ou potencialmente ofensiva.
Elas me responderam que não, que não poderíamos, porque isto significaria encobrir a história e, ao contrário, seria preciso manter objetividade e apresentar os fatos, simplesmente.
Embora dividido, concordando parcialmente, minha primeira reação foi a de lembrar que as instituições de memória apresentaram a história colonial, predominantemente, como fato dado, excluindo as vozes dos povos marginalizados e, ao atuarem assim, demonstraram uma inclinação tendenciosa intrínseca (Randall, C. Jimerson. Archives power: memory, accountability, and social justice, 2009).
Esta dita inclinação tendenciosa manifesta-se na maneira com que o material é coletado, descrito, preservado e exibido (Robert Jensen. The myth of the neutral professional” Questioning Library Neutrality Essays from Progressive Librarian, 2008). Reafirmo que museus, bibliotecas e arquivos não podem manter-se objetivos e neutros – simplesmente pelo fato de nunca o haverem sido.
Muitos já contestaram a objetividade das instituições de memória, salientando que suas coleções são dirigidas por pessoas e que elas mesmas têm suas próprias perspectivas e intenções, donde se deduz sua impossibilidade de serem agentes imparciais (Randall C. Jimerson, 2009; Shiraz Durrani e Elizabeth Smallwood. The Professional is Political: Redefining the Social Role of Public Libraries, 2008).
As perspectivas delas recebem influência de sua epistemologia (Ambelin Kwaymullina. Research, ethics and Indigenous peoples…, 2016), que por sua vez afeta suas decisões, tais como que informações deveriam ser preservadas para as futuras gerações. Uma vez que conformam a memória do público, estas decisões tornam-se decisões políticas (Randall C. Jimerson, 2009).
Há sistemas que são reconhecidamente criados para reduzir escolhas individuais com relação às coleções das instituições de memória, para preservar a objetividade, tais como políticas governamentais e critérios profissionais, guias e normas.
Entretanto, estes sistemas são influenciados pela cultura dominante, a qual, em países colonizados, é a cultura ocidental eurocêntrica (White, 2017; Randall C. Jimerson, 2009). Há uma razão pela qual o código de catalogação predominante nas bibliotecas até recentemente chamava-se Código de Catalogação Anglo Americano (AACR2).
Além do mais, já que muitas instituições de memória fazem parte do governo, ou são financiadas por estes, não só são influenciadas pela cultura dominante como, além disso, são influenciadas também pelos governantes (Trish Luker. Decolonising Archives: Indigenous Challenges to Record Keeping in ‘Reconciling’ Settler Colonial States Australian Feminist Studies, 2017; Randall C. Jimerson, 2009,216). Diferentes governos têm posições políticas diferentes, que podem mudar a objetividade das instituições de memória.
No que diz respeito à herança cultural dos povos originários, tem-se argumentado que as instituições de memória são instrumentos de colonização. Dentro delas, as potências coloniais costumavam fazer proliferar narrativas para seus próprios fins (Trish Luker, 2017; Nathan Sentance. The Paternalistic Nature of Collecting” Archival Decolonist, 2017).
Por exemplo, as exposições em museus de história natural mostravam os Povos Originários como selvagens primitivos, o que ajudou a justificar expropriação de terras, uma vez que isto nos enquadrava como inferiores e necessitados da civilização ocidental (Genovese, 2016, 34; Linda Tuhiwai Smith. Decolonizing Methodologies: Research and Indigenous Peoples, 2012).
Além disso, as instituições ocidentais, aí incluídas as instituições de memória, têm uma longa tradição de dar uma posição central aos povos ingleses não indígenas, quando fazem relatos sobre a história e a cultura Povos Originários (Nathan Sentance, 2017ª; Aileen Moreton-Robinson. Whitening Race: Essays in social and cultural criticism, 2004).
Ambelin Kwaymullina sugere que esta tradição reforça a colocação das pessoas de origem inglesa como a norma, [de centralidade natural] o que desloca os povos originários para o lugar do “outro”. Em consequência, os povos originários, ao invés de serem considerados como pares humanos, são percebidos como objetos da história ou da antropologia (Ambelin Kwaymullina, 2016, 43; Linda Tuhiwai Smith, 2012).
Em vista disso, muitos não consideram as instituições de memória como fontes isentas de informação, mas ao contrário, como instrumentos políticos. Aceitar sua neutralidade implica em aceitar a distribuição de poder existente, que é reforçada por elas e para a qual elas contribuem.
Esta ideia de neutralidade nas instituições é muito inspirada pelo Iluminismo e pelo conceito de que o meio acadêmico eurocêntrico do ocidente produz um conhecimento universal que por sua vez é universalmente relevante (Ambelin Kwaymullina, 2016).
Esta noção retrata os eruditos ocidentais como se eles tivessem um lugar neutro de fala, o que significa que os que estão fora do meio acadêmico ocidental são “tendenciosos”. Como resultado, esta noção deslegitimou a produção de conhecimento dos povos originários e negou-lhe plurarismo histórico e cultural (Ambelin Kwaymullina, 2016).
PORQUE ISTO É UM PROBLEMA
Há questões que podem ocorrer se a noção de neutralidade nas instituições de memória não for posta em discussão continuamente. Por exemplo, se uma instituição de memória for considerada como neutra, certas ações como acrescentar histórias de opressão dos povos originários à coleção com o objetivo de retificar desequilíbrios de perspectiva do passado podem não ser considerados como uma ação afirmativa, mas sim como um ato político.
Isto poderia levas as instituições de memória a evitar ações necessárias por elas serem “de risco”, uma vez que elas não querem ser políticas (Robert Jensen, 2008).
Da mesma maneira, se as instituições de memória são neutras, então o eurocentrismo que lhes é inerente também é neutro, o que leva os povos originários a continuarem sendo enquadrados como os “outros”. Torna-se mais difícil, então, contestar e mudar os privilégios dos brancos e o racismo institucional dentro das instituições de memória e de forma mais ampla, da sociedade.
Além disso, se ser neutro significa evitar envolver-se em movimentos de contestação às estruturas opressivas, então pode-se argumentar que as instituições de memória, ao tentarem ser neutras, embora não sendo compostas de pessoas ativamente opressoras, apoiaram o opressor (Robert Jensen, 2008).
Indo além, isto faz com que as instituições de memória sejam menos efetivas em criar mudança social, o que, portanto, as torna menos relevantes socialmente (Joesph Good. The Hottest Place in Hell: The Crisis of Neutrality in Contemporary Librarianship, 2008).
Para concluir, as instituições de memória precisam colocar em discussão as percepções internas e externas sobre sua neutralidade e nós precisamos chegar a uma conclusão sobre o que isto significa.
*Publicado originalmente no site Archival Decolonist [-o-] sob o título “Your neutral is not our neutral”. Tradução e adaptação da bibliotecária Gilda Queiroz.
Fonte: Revista Biblioo